Acrasia: Entre o Saber e o Agir na Filosofia Moral e na Escritura Judaico-Cristã

Acrasia: Entre o Saber e o Agir na Filosofia Moral e na Escritura Judaico-Cristã
Por V. A. Duarte – Pastor Batista, Professor e Escritor

Acrasia (do grego akrasía) é um conceito filosófico que designa a condição em que um indivíduo age contra seu próprio juízo racional — ou seja, mesmo sabendo o que seria a melhor ação, opta por fazer o contrário. Essa tensão entre conhecimento e ação tem sido objeto de reflexão desde a filosofia clássica, especialmente no campo da ética e da psicologia moral.

Fundamentos Filosóficos da Acrasia. Na tradição socrática, o erro moral é atribuído à ignorância: ninguém faz o mal voluntariamente. Sócrates sustentava que, se alguém age de forma errada, é porque não compreende verdadeiramente o bem (Platão, Protágoras, 352d). Platão, por sua vez, introduz uma concepção tripartida da alma — razão, espírito e desejo — e reconhece a possibilidade de conflito interno, em que o desejo pode sobrepujar a razão (A República, Livro IV). Aristóteles avança na análise ao admitir que uma pessoa pode agir contra seu juízo racional mesmo tendo pleno conhecimento do que é certo. Em sua obra Ética a Nicômaco, ele distingue entre o agente acrático (que cede ao desejo) e o agente continente (que resiste), caracterizando a acrasia como uma fraqueza da vontade, não como ignorância. Na contemporaneidade temos duas abordagens principais que nos ajudam a compreender o fenômeno da acrasia: A Teoria do Conflito de Desejos que pontua que o indivíduo é movido por múltiplos desejos simultâneos, nem todos alinhados com a razão. A acrasia ocorre quando o desejo mais forte — geralmente ligado ao prazer imediato — prevalece sobre o desejo racional. Aristóteles já apontava essa tensão entre o apetite e a razão como uma luta moral interna e a Teoria da Fraqueza de Vontade em que o foco está na incapacidade de agir conforme o juízo racional, mesmo quando este é claro. A falha não está na força do desejo, mas na ausência de autocontrole. A pessoa reconhece o que é melhor, mas não consegue resistir à tentação, revelando uma desconexão entre saber e fazer. Essas teorias não são excludentes. Em muitos casos, a acrasia resulta da combinação entre um desejo intenso e uma vontade enfraquecida. Há ainda abordagens complementares, como o autoengano, em que o sujeito racionaliza sua escolha para evitar o confronto com sua própria incoerência. Vejamos alguns exemplos práticos de manifestações cotidianas da acrasia: 1. Um fumante que deseja parar, sabe dos riscos, mas continua fumando; 2. Alguém que planeja economizar, mas cede a compras impulsivas; 3. Um estudante que decide estudar, mas opta por assistir à série favorita. Esses exemplos ilustram como o conhecimento do bem não garante sua realização.

A Acrasia na Escritura Judaico-Cristã. A tensão entre razão e ação não é exclusiva da filosofia. O apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos, expressa com profundidade essa luta interna: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço.” (Romanos 7:19). Esse versículo revela a consciência moral do sujeito diante de sua própria incapacidade de realizar o bem que reconhece. Paulo não atribui essa falha à ignorância, mas à força do pecado e à fraqueza da vontade humana — uma leitura que dialoga diretamente com as concepções aristotélicas e contemporâneas da acrasia. Como pontuamos a acrasia é um fenômeno que revela a complexidade da ação humana, pois entre o saber e o fazer, há uma zona de conflito onde desejos, impulsos e força de vontade se entrelaçam. Compreender esse conceito é essencial para refletir sobre a ética da autonomia, o papel da razão na vida prática e os limites do autocontrole. A filosofia e a teologia, ao iluminarem essa tensão, nos convidam a cultivar não apenas o conhecimento do bem, mas também a disposição e a força para o realizar.

Referências Bibliográficas

Aristóteles. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Platão. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

Bíblia Sagrada. Romanos 7:19. Tradução Almeida Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.